Os atletas da contrição

Artigo de Fernando Gabriel no Diário Económico

O filósofo Vladimir Jankélévitch observou ironicamente que os erros cometidos por Israel eram uma dádiva: facilitavam a assimilação do sionismo ao nazismo, tornando o anti-semitismo finalmente acessível a todos.

Esta metamorfose anti-histórica do perseguido em perseguidor visa tornar Israel numa abominação, porque o nazismo, tal como a pedofilia, é evocador de uma indecência não mitigável. Note-se que os padres envolvidos nos abusos pretéritos de menores são inequivocamente designados como pedófilos, enquanto que os futebolistas franceses que mantiveram relações sexuais com prostitutas menores são apenas indivíduos “envolvidos num caso de proxenetismo”: à diferença semântica corresponde uma diferença substancial de opróbrio. Não me interessa a abjecção dos actos cometidos por uns ou outros: interessa-me notar a forma criteriosa como o termo pedofilia é utilizado para manter acesa a fogueira do anticlericalismo.

Como Pascal Bruckner argumentou no ensaio La tyrannie de la pénitence (Paris, 2006) as ideologias seculares que dominam por completo a discussão intelectual europeia apropriaram-se do sentimento de culpa imanente à cultura judaico-cristã e perverteram-no com uma finalidade política destrutiva. Nesta deturpação secular da teologia, o estatuto de vítima ressuscita a categoria religiosa do amaldiçoado, estimulando o aparecimento de inúmeras congregações de sofredores e estigmatizados que competem pelo rendimento moral proporcionado pelo sofrimento, num fraccionamento neo-tribal destruidor da condição civil. Os judeus, tendo cometido o crime imperdoável de afirmar o seu desejo de existir sem prévia autorização dos europeus, viram o seu privilégio de vítimas históricas ser-lhes revogado e transferido para o “palestiniano”, por ser aquele que corporiza de forma cristalina o ódio ao ocidente, como admitiu Jean Genet. A admissão pública do pecado, típica do protestantismo evangelista, foi transformada numa culpa generalizada, difusa e permanente pelo passado histórico europeu, exumado e colocado perante o tribunal intelectual de uma casta pseudo-clerical e condenado por crimes imprescritíveis, de colonialismo, imperialismo ou “genocídio”. Gerações de europeus são educadas na genuflexão rotineira sob o peso desta pretensa culpa, enquanto a oligarquia intelectual, autênticos atletas da contrição, como lhes chamou Bruckner, administra com zelo e entusiasmo os rigores penitenciais. Como Bento XVI pretende restaurar a autoridade ética e intelectual da Igreja Católica, tornou-se num Papa perigoso para os atletas da contrição: vale tudo para o desacreditar, até ameaçá-lo de prisão.

Este culto do masoquismo foi instituído em política única de uma Europa consumida na obsessão hedónica e que abraça a sua culpa para melhor se isolar do mundo, imaginando que a diminuição da penitência auto-imposta a isentará dos tormentos da realidade. Sucede que a penitência secular não constitui a via para a salvação: é o método mais expedito de destruição da cidade dos homens. Entre os vizinhos geográficos dos masoquistas europeus há notórios sádicos, como o Irão, que não hesitará em impor a submissão através do horror de uma chacina nuclear. Nem que seja para salvaguardar a continuidade da deprecação, convinha que os europeus percebessem a diferença entre uma política e uma proposta de suicídio

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