Tag Archives: Democracia

São Rosas

Porque convém conhecer os autores antes de os usar como arma de arremesso ou em vergonhosos exercícios de assassinio de carácter aqui fica um oportuno esclarecimento do Luciano Amaral.

Carl Schmitt não é um crítico da democracia, é um crítico do liberalismo. Schmitt acreditava no poder de excepção do soberano. Como, no mundo contemporâneo, o soberano é o povo, Schmitt acreditava que todo o poder de excepção no mundo contemporâneo se teria de fundar na democracia. Acusar alguém de ser liberal, anti-democrático e schmittiano é um simples absurdo.

[A] democracia envolve uma dimensão conformista, totalitária e liberticida; na medida em que a democracia procura restringir diversas liberdades, incluindo a de pensamento, nomeadamente a liberdade de criticar a democracia – daí o conformismo, o totalitarismo e o liberticídio potenciais na democracia. (…) Convém relembrar a velha boutade churchilliana que toda a gente cita e muita parece ainda não ter percebido completamente: a democracia é o pior dos regimes… com excepção dos outros todos (sublinhado meu).

Comércio livre e democracia

No Vox.eu

The economic effects of free trade agreements [FTAs] are widely studied, but what about their political impact? Using data from over 125 countries over the past 60 years, this column argues that by removing protectionism, free trade can lower the government’s power and hence the incentives of autocrats to hold office. All this can help strengthen democracy(…)

In recent research (Ornelas and Liu 2011), we present evidence that participation in free trade agreements can destroy protectionist rents. They can also serve as commitment devices to destroy future protectionist rents. Since such rents are attractive for autocratic groups, FTAs can lower their incentives to seek power. While this has little value in established democracies, where the rule of law is strong and the risk of authoritarian disruption is negligible, it can be important for unstable democracies. These threatened states should therefore have an extra incentive to seek involvement in FTAs, over and above the incentive stemming from the agreements’ potential trade gains.

Democracia e liberdade

“Entre a doçura e o fel das Democracias sem Liberdade” de Rodrigo Adão da Fonseca (O Insurgente)

O erro está em considerar que a opção pela democracia acarreta em si mesma valores finais, não funcionais. É que uma sociedade pode ser funcionalmente democrática, mas isso não significa que ela opte por adoptar os valores próprios de uma Democracia Liberal, ou de um Estado de Direito onde imperem a Separação de Poderes ou o Laicismo do Estado, condições essenciais para a afirmação de um ambiente de liberdade e de efectivo pluralismo.(…) A democracia pode vir a dar lugar a regimes teocráticos, incómodos para a Europa acomodada? É bem feito, pode ser que comecemos a perceber que foi um erro cair no relativismo, no politicamente correcto oco e burocrático, e na crença que, em sociedades abastadas como as europeias, não fazia sentido batalhar pelas ideias, e preservar e difundir a nossa matriz judaico-cristã. Quem diria, não é que a democracia não serve para nada, se nos esquecermos dos valores e das ideias?

Egipto: instituições e democracia

“O Martelo Universal” de Fernando Gabriel (Diário Económico)

Por grosso, a coisa resume-se à regurgitação do credo revolucionário de Thomas Paine. (…) [O]s repetidores actuais dispensam-se de maçadas e declaram a democracia como o único sistema de governo, intrínseca e irrestritamente bom. Pouco lhes importa que na Inglaterra, onde Paine nasceu, a “universalização” da democracia foi o resultado de quase um século de reformas políticas graduais; ou que os EUA (…) tenham nascido como projecto republicano, só posterior e gradualmente democratizado. Não lhes ocorre, ou não lhes interessa, considerar as consequências potencialmente desastrosas da súbita introdução da “democracia” num país sem qualquer simulacro verosímil de Estado de Direito e em particular, sem um poder judicial independente e imparcial.(…)

Contrariar os desejos da turba, ou mostrar cepticismo quanto à prioridade da “democracia”, assegura imediatamente a condenação moral de “colaboracionismo” com a autocracia do senhor Mubarak, uma condenação sem recurso já aplicada às políticas externas dos países ocidentais. Rousseau e Paine também supunham que a política externa era uma “conspiração” de governos corruptos contra “os povos”, e, à semelhança de Trotsky, não lhe viam qualquer utilidade depois do “triunfo revolucionário”. As suas réplicas actuais desdobram-se em argumentos engenhosos para demonstrar a inocuidade prospectiva da Irmandade Islâmica e a desnecessidade de qualquer política externa: basta abençoar a democratização imediata do Egipto e o mundo árabe vai de si mesmo. (…) Emancipar o Egipto exige dotar o país de um Estado de Direito que faculte aos egípcios o acesso legal à propriedade, uma tarefa complexa que necessita do apoio de uma diplomacia ocidental cuidadosa e sofisticada. Insistir na democracia sem cuidar desta e de outras questões institucionais dará péssimo resultado; argumentar que a democracia encarregar-se-á de resolver os problemas, oscila entre a desonestidade e a ignorância, mas como dizia Mark Twain, quando só se tem um martelo, tudo se parece com um prego.

Whisful thinking

Recordem o aviso de Anne Applebaum. O desfecho da revolução tunisina pode não ser um regime democrático. O ex-autocrata tunisino usou o fantasma do fundamentalismo islâmico para implantar uma cleptocracia com a complacência do Ocidente. O problema é que o futuro próximo pode vir a dar-lhe razão. A alternativa a Ben Ali pode não ser um regime democrático ao gosto europeu mas algo bem pior. Para nós e para os tunisinos.

Recordo a revolução iraniana e de como na altura foi demonizado o deposto Shah. O seu sucessor até tinha estado exilado na secularissima França.

Democracia sindical

El secretario general de UGT, Josep Maria Álvarez, ha afirmado este miércoles que “el derecho a no hacer huelga no existe” y que los trabajadores que acuden hoy a trabajar lo hacen coaccionados por sus jefes.

Faço notar que, tal como a sua homonima portuguesa, a UGT espanhola é uma confederação sindical tido como moderada e com fortes ligações aos socialistas.

O governo de eunucos

Artigo de Fernando Gabriel no Diário Económico

A “democracia” enquanto termo descritivo da autoridade da governação identifica um arranjo constitucional, conferindo uma qualidade concreta a essa autoridade através da identificação dos ocupantes do governo: a demos.

É esse o sentido da conhecida síntese de Lincoln: ‘government of the people, for the people, by the people’. Nas reflexões de Bodin, Hobbes ou Rousseau, os arranjos constitucionais definidores da obrigação política não foram confundidos nem com o aparato de poder instrumental para a governação, nem com o conteúdo substantivo da governação, mas John Mill iniciou uma mudança fundamental ao identificar a “bondade” do governo com as consequências das políticas prosseguidas. O governo “democrático” tornou-se numa máquina utilitária de satisfação de necessidades e distribuição de benefícios que satisfaz, presumivelmente, as preferências da “maioria”.

Se a democracia no sentido constitucional não pode, por definição, ser totalitária, o mesmo já não é garantido sobre a corrupção hoje identificada como “democracia”. A sugestão de que as democracias contemporâneas estão a tornar-se totalitárias não é nova, mas poucos filósofos têm tratado o assunto com a seriedade que ele exige: Kenneth Minogue é uma excepção e no seu livro mais recente, “The Servile Mind” (New York, 2010) reflecte sobre a nacionalização democrática da vida moral. O princípio deste projecto político-moral foi resumido num proeminente ‘slogan’ dos anos 60: o pessoal é político. As práticas, as opiniões aceitáveis, o modo de educação dos filhos, a conduta sexual ou os hábitos alimentares são crescentemente submetidos à aprovação colectiva e o aparato de poder do Estado é utilizado para a imposição da conformidade com o ideal igualitário, produzindo uma homogeneização destruidora da tradição de criatividade do ocidente. É este ambiente que explica a naturalidade com que a modelo Giselle Bundchen exigiu recentemente a obrigatoriedade legal da amamentação. Nem os planeadores comunistas se atreveram a tanto, mas nas democracias totalitárias é mais provável que se discuta o “impacte” da medida do que se condene a obscenidade da sugestão.

Sob a governação democrática a conduta moral foi substituída por uma corrupção sociológica, promovida por “peritos” na recomendação de “comportamentos” e na avaliação de “resultados”. O projecto “democrático” assenta na negação da oposição maquiavélica entre considerações de interesse de Estado e considerações morais: não só não são incompatíveis, mas são, afirmam os defensores do projecto, complementares. A salvação do planeta, a extinção dos males da fome e da doença, a paz perpétua ou a maior felicidade do maior número são diferentes racionalizações éticas deste imperativo político. O potencial atractivo da causa atrai a simpatia geral e desperta em muitos um ardor beato que nenhuma quantidade finita de recursos centralizados sob o comando do poder político é capaz de satisfazer. A atribuição de um sentido moral ao projecto condena a dissensão política e fomenta o culto do poder. Em consequência, a participação na associação política perdeu as características da cidadania e deu lugar ao “utente” passivo, o utilitário vulgar, o “porco satisfeito” que John Mill temia mas a quem serviu de parteira ideológica. Destruída a ficção representativa e evaporada a responsabilidade política com a proliferação de aparatos de poder, infra e supra Estados, que fazem política sem qualquer vislumbre de legitimidade, a máxima de Lincoln precisa de actualização: a democracia é hoje o governo de eunucos, pelos eunucos e para os eunucos.

Democracia e escolhas democráticas

Por ocasião de mais um aniversário do 25 de Abril, e como é costume, vários figuras públicas têm sido convidadas a fazer um balanço das realizações do regime democrático. De forma recorrente, muitos dizem-se desiludidos com a subsistência de pobreza, iliteracia ou desigualdades várias. É frequente a conclusão que a “democracia não foi cumprida”. Um desiderato que considero absurdo.

A Democracia fornece um método de decisão colectivo e de transição pacífica dos governantes. No entanto, o processo político não favorece à priori qualquer distribuição das fortunas (entendida no sentido lato) dos indivíduos. O processo de decisão maioritária também não garante a justeza das decisões (sendo o caso mais gritante o respeito pelos direitos dos indivíduos) ou a boa conduta dos governantes. Deste ponto de vista, a democracia foi “cumprida” a partir do momento em que se devolveu aos indivíduos o poder de voto e, algo mais tarde, quando terminou a tutela militar sobre o sistema político.

Considero um erro grave, e potencialmente perigoso, atribuir ao sistema democrático objectivos que mais não são que escolhas democráticas. Como lembra o Miguel Morgado “o povo troca com facilidade a liberdade por pão”. Qualquer dia já não conseguimos separar o processo democrático do socialismo iliberal que nos empobrece e infantiliza diariamente.