Artigo de Fernando Gabriel no Diário Económico
A “democracia” enquanto termo descritivo da autoridade da governação identifica um arranjo constitucional, conferindo uma qualidade concreta a essa autoridade através da identificação dos ocupantes do governo: a demos.
É esse o sentido da conhecida síntese de Lincoln: ‘government of the people, for the people, by the people’. Nas reflexões de Bodin, Hobbes ou Rousseau, os arranjos constitucionais definidores da obrigação política não foram confundidos nem com o aparato de poder instrumental para a governação, nem com o conteúdo substantivo da governação, mas John Mill iniciou uma mudança fundamental ao identificar a “bondade” do governo com as consequências das políticas prosseguidas. O governo “democrático” tornou-se numa máquina utilitária de satisfação de necessidades e distribuição de benefícios que satisfaz, presumivelmente, as preferências da “maioria”.
Se a democracia no sentido constitucional não pode, por definição, ser totalitária, o mesmo já não é garantido sobre a corrupção hoje identificada como “democracia”. A sugestão de que as democracias contemporâneas estão a tornar-se totalitárias não é nova, mas poucos filósofos têm tratado o assunto com a seriedade que ele exige: Kenneth Minogue é uma excepção e no seu livro mais recente, “The Servile Mind” (New York, 2010) reflecte sobre a nacionalização democrática da vida moral. O princípio deste projecto político-moral foi resumido num proeminente ‘slogan’ dos anos 60: o pessoal é político. As práticas, as opiniões aceitáveis, o modo de educação dos filhos, a conduta sexual ou os hábitos alimentares são crescentemente submetidos à aprovação colectiva e o aparato de poder do Estado é utilizado para a imposição da conformidade com o ideal igualitário, produzindo uma homogeneização destruidora da tradição de criatividade do ocidente. É este ambiente que explica a naturalidade com que a modelo Giselle Bundchen exigiu recentemente a obrigatoriedade legal da amamentação. Nem os planeadores comunistas se atreveram a tanto, mas nas democracias totalitárias é mais provável que se discuta o “impacte” da medida do que se condene a obscenidade da sugestão.
Sob a governação democrática a conduta moral foi substituída por uma corrupção sociológica, promovida por “peritos” na recomendação de “comportamentos” e na avaliação de “resultados”. O projecto “democrático” assenta na negação da oposição maquiavélica entre considerações de interesse de Estado e considerações morais: não só não são incompatíveis, mas são, afirmam os defensores do projecto, complementares. A salvação do planeta, a extinção dos males da fome e da doença, a paz perpétua ou a maior felicidade do maior número são diferentes racionalizações éticas deste imperativo político. O potencial atractivo da causa atrai a simpatia geral e desperta em muitos um ardor beato que nenhuma quantidade finita de recursos centralizados sob o comando do poder político é capaz de satisfazer. A atribuição de um sentido moral ao projecto condena a dissensão política e fomenta o culto do poder. Em consequência, a participação na associação política perdeu as características da cidadania e deu lugar ao “utente” passivo, o utilitário vulgar, o “porco satisfeito” que John Mill temia mas a quem serviu de parteira ideológica. Destruída a ficção representativa e evaporada a responsabilidade política com a proliferação de aparatos de poder, infra e supra Estados, que fazem política sem qualquer vislumbre de legitimidade, a máxima de Lincoln precisa de actualização: a democracia é hoje o governo de eunucos, pelos eunucos e para os eunucos.